O chulé que rendia presentes

30 mar • A Vida como ela foiNenhum comentário em O chulé que rendia presentes

A preparação da Páscoa nos idos de 1950 era dura de enfrentar. Os santos nas igrejas eram cobertos com panos roxos, as sinetas dos coroinhas eram substituídas por matracas, badalar de madeira em cima da madeira. Tinha que fazer jejum e abstinência – comer uma vez por dia – e não comer carne. Quem não oferecesse ia para o inferno. Pecado mortal que deveria ser devidamente confessado.

    Na Sexta Feira da Paixão era proibido rir. Carne  vermelha não, só peixe. A tradição se mantém. Certa vez, perguntei para o padre se galinha podia. Levei uma bordada nos dedos pela insolência da pergunta. Pôxa, eu só queria uma coxinha…
    Os rádios só tocavam música erudita ou cânticos religiosos. Era obrigado a participar da Procissão do Nosso Senhor Morto. Na missa, havia a cerimônia do Lava Pés. Eu me escalava sempre, mas não por religiosidade, porque ganhá-lo vamos doces e chocolates.
   Antes do padre lavar nossos pés, eu lavava cuidadosamente os meus. Vai que tivesse chulé, o padre podia não dar os presentes, imaginava eu. Do meu lado, os pés do Joãozinho exalavam chulé, mas o padre deu presente igual. Vai ver tinha perdido o olfato. Início de gripe, quem sabe.
    No Sábado de Aleluia se aplicava uma pegadinha besta. Bater forte nas costas do outro e ao mesmo tempo gritar “aleluia”. Teoricamente, para espantar algum espírito maligno dorminhoco. Como se era magrinho, passava com dores nas costas por uma semana. Deus não era justo, pensava. É devia ser grandalhão e parrudo como os torturadores precoces.
    Domingo tudo voltava ao normal. Felizes como pintos no lixo, procurávamos ovos de chocolate e ou e de galinha cozidos pintados com várias cores. Engraçado como ovo colorido tinha mais sabor. As mães guardavam as cascas inteiras dos ovos usados na cozinha e as enchiam de amendoim torrado com açúcar. Para que não saíssem, fechavam as extremidades colando papel.
    Descontando os doloridos tapas nas costas, não poder rir, nem contar piada “suja” e ouvir música fúnebre no rádio, o resto era legal. O chocolate apagava as más lembranças instantaneamente.
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Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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