Felicidade, essa exceção
Na metade dos anos 1950, vi o filme “Se meu apartamento falasse”, com Jack Lemon fazendo o papel de um milionário entediado e à procura de um amor perpétuo. Lá pelas tantas, ele fala com alguém e olha da janela do seu escritório para a rua com calçadas cheias de gente e carros passando.
“Tenho pena dessas pessoas, porque elas não sabem que são felizes”, disse ele, enquanto remarcava consulto com seu analista. “Nasci com uma fortuna de 8 milhões de dólares e passados todos estes anos e continuo com 8 milhões de dólares”, lamentou o personagem de Jack. Na época, achei muito engraçado, especialmente a parte da gente feliz.
Hoje não rio mais. No máximo, abro um sorriso interno pela minha ingenuidade dos tempos de adolescente. Parecia-me um absurdo que a ignorância pudesse ser motivo de felicidade. Mas hoje sabemos que a ignorância dos perigos desta vida pode, sim, resultar em felicidade, desde que os demônios internos estejam dormindo.
A cobertura dos meios de comunicação em suas várias plataformas acrescida de notícias falsas de tragédias e mortes não geram risos. Ao contrário, causam mal estar. O acúmulo de tragédias vistas, ouvidas e lidas nos causam profundo desgosto quando a alma não é pequena, no dizer do poeta português Fernando Pessoa.
Eppur si muove, falou Galileu Galilei, em voz baixa, quando os torturadores da Santa (!) Inquisição da Igreja Católica o ameaçaram com a fogueira, caso insistisse que a Terra girava em torno do Sol e não o contrário, como queria a Santa Madre. No entanto, ela se move.
Quando eu me aprofundei na história das injustiças da Humanidade, fiquei pasmo ao ver o quanto a Igreja aprontou. Pasmo e triste. Lembro que, em um determinado momento dos meus 19 ou 20 anos, desejei não ter lido aquelas barbaridades. E dizer que dois ou três anos antes eu achava graça da frase do Jack Lemon.
Ocorre que é preciso se apavorar para ter um juízo crítico. Quando a idade avança, vemos o quanto a História não tem nexo, salvo a lógica de se matar uns aos outros. De preferência, aos pouquinhos.
Então como faz? O grande pianista Artur Rubinstein, um ser aclamado em todo mundo por sua virtuose, era um homem de aparência frágil, magro, mas definitivamente bem-humorado. Quando chegou aos 88 anos, ficou sabendo que ficaria cego em pouco tempo. E ficou, dois meses depois. Mesmo assim, se apresentou em um teatro lotado de admiradores para ouvir o Concerto número 2 de Chopin. E feliz da vida.
Não sou muito de fórmulas, filosofia de algibeira e frases de autoajuda, mas uma frase de Rubinstein me tocou muito. Para ser feliz é preciso aceitar o inexorável, mais ou menos assim.
É uma das trocentas frases que ele criou, a maioria tratando da felicidade e como obtê-la. Funcionou com ele? Pergunta o meu amargo Eu. Mas pode funcionar com você, responde minha cabeça. Um diálogo diário entre a razão e a dura realidade.
Sobre aceitar as vicissitudes, tenho por mim que os povos europeus tiveram tantas tragédias coletivas e desesperanças pelas diversas guerras e tragédias naturais que, ao ter um por cento de vida normal, eles já se sentem felizes. Meu pai, alemão, que combateu na I Guerra Mundial, em um caçaminas da Marinha Imperial , costumava dizer que brasileiro usa em vão a palavra crise.
Crise, disse ele, é comer carne de cavalo podre jogada nas ruas, crise é ferver sola de botina durante horas para obter alguns gramas de proteína, isso sim é crise.
Entendem agora porque o homem feliz só tinha uma camisa?
No fundo, é tudo uma questão de consciência da dimensão humana. Se não a temos é bom para ser feliz, ou menos infeliz, O homem feliz só tinha uma camisa, era frase da época.