O Pé na Cova

21 set • Caso do DiaNenhum comentário em O Pé na Cova

Tinha esse apelido porque era magro como uma faquir visto de lado e mais curvado que corcova de camelo, além de ser homem na faixa dos 90 anos.  Os garçons do Chalé da Praça XV  do tempo em que seu Ernesto Moser era  dono, diziam que ele era médico aposentado, nunca conferi. E mal-humorado que só ele. Despejava falas mais espinhentas que traíra de sanga. E como defeito pouco é bobagem, era pão-duro a mais não querer. Não pagava bem os 10% e nenhum centavo de gorjeta deixava de voltar aos bolsos do surrado paletó preto que talvez um dia fosse de cor bege.

Fosse hoje, eu o chamaria de Doutor TOC, mas naqueles tempos, década de 1970, essas manias ainda não tinham sido batidas e registradas em cartório. Cumpria  sempre o mesmo ritual nos mínimos detalhes. Obcecado por limpeza e temente não a Deus mas aos germes, primeiro ia ao banheiro onde lavava as mãos com um sabonete medicinal por pelo menos cinco minutos. Não enxugava as mãos nem com papel-toalha, esperava que secassem normalmente. Voltava para a mesa e, sempre com as mãos para o alto, trançava as pernas nas pernas da ceira para aproximá-la da mesa para não tocar em nada.

Com as mão secas, tirava da sacola um plástico branco um vidro contendo um líquido verde, um pão de 50 gramas e uma porção de manteiga rodeado de dois cubos de gelo, tudo embalado em papel manteiga. Então ela fazia o único pedido ao garçom: meio filé bem passado. Quando a carne chegava na mesa, Pé na Cova pegava garfo e faca e fazia picadinho do filé, que virava guisado quase.

Então pegava o tal líquido verde e despejava num copo, que também trazia de casa. De tempos em tempos, alguém da casa pregava-lhe uma peça. No preciso momento em que ele se preparava para pegar o pão e enfiar nele o picadinho, um dos garçons vinha pela lateral dirigia-lhe um caloroso alô acompanhado da mão estendida, que em reflexo automático Pé na Cova pegava.

Quando se dava conta que estava novamente contaminado, despejava nacos de irritação embebidos em caldo de raiva e voltava para o banheiro onde refazia toda a operação mata-germes. E depois voltava à mesa fuzilando o garçom com um brilho assassino no olhar com as magras e ossudas mãos cheias de veias azuladas para o alto.

O recorde foram três descontaminações num mesmo dia.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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