O Pé na Cova

29 jan • Sem categoriaNenhum comentário em O Pé na Cova

Tinha esse apelido porque era magro como um faquir visto de lado e mais curvado que corcova de camelo, além de ser homem na faixa dos 90. 

Os garçons do Chalé da Praça XV e o gerente João diziam que ele era médico aposentado. Nunca conferi. E mal-humorado que só ele. Despejava falas mais espinhentas que traíra de sanga.

E como defeito pouco é bobagem, era pão-duro a mais não querer. Não pagava nem os 10% e nenhum centavo de gorjeta deixava de voltar aos bolsos do surrado paletó preto que talvez um dia fosse de cor bege.

Hoje, eu o chamaria de Doutor TOC. Fazia sempre o mesmo ritual nos mínimos detalhes. Obcecado por limpeza, era temente não a Deus, mas aos germens. Primeiro, ia ao banheiro onde lavava as mãos com um sabonete medicinal por pelo menos cinco minutos.

Não enxugava as mãos nem com papel-toalha. Esperava que secassem normalmente. Voltava para a mesa e, sempre com as mãos para o alto, trançava as pernas nas pernas da cadeira para aproximá-la da mesa para não tocar em nada.

Com as mãos secas, tirava da sacola um plástico branco, um vidro contendo um líquido verde, um pão de 50 gramas e uma porção de manteiga rodeado de dois cubos de gelo. Tudo embalado em papel manteiga.

Então, fazia o único pedido ao garçom: meio filé bem passado. Quando a carne chegava na mesa, Pé na Cova pegava garfo e faca e fazia picadinho do filé, que virava guisado quase.

Em seguida, pegava o tal líquido verde e despejava num copo, que também trazia de casa. No preciso momento em que ele se preparava para pegar o pão e enfiar nele o picadinho, um dos garçons vinha pela lateral e dirigia-lhe um caloroso alô acompanhado da mão estendida, que, em reflexo automático, Pé na Cova pegava.

Quando se dava conta que estava novamente contaminado, despejava nacos de irritação embebidos em caldo de raiva e voltava para o banheiro onde fazia toda a operação mata-germem. E depois retornava à mesa fuzilando o garçom, com um brilho assassino no olhar. As magras e ossudas mãos cheias de veias azuladas para o alto.

O recorde foram três descontaminações em menos de uma hora.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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