O cartão mágico

29 nov • A Vida como ela foiNenhum comentário em O cartão mágico

Ela se fora muito cedo, poucos anos depois do casamento. Deixou um viúvo inconsolável, que chorava lágrimas secas porque o poço da dor da perda havia secado. Mas a dor nunca mais o deixou. Seus olhos nunca mais riram,  embora ele aparentasse uma certa alegria, apenas leves traços dela. Da união nasceu um casal de gêmeos, que lhe deram netos.

Nunca mais se casou. Se teve algum caso, não deixava transparecer. Era muito jeitoso, fazia origamis para os netos, brincava pacientemente com eles. Era bom até em hologramas, o que fascinava a gurizada.. Eventualmente, deixava alguma alegria desembarcar nos olhos, mas era um momento e deu.

Tinha poucos amigos e zero de convívio social. A solidão e a falta da sua amada passaram a ser suas companheiras. “Saia um pouco, vá beber uns chopes com seus amigos de juventude”, diziam. Inútil, não arredava pé da casa da filha e, aos domingos, almoçava com o filho.

Seu único passatempo era um cartão do tamanho de um tablet que nunca deixava à vista, por mais que os filhos insistissem em vê-lo. Com o correr das décadas, passou a morar com a filha. Não tiveram coragem de interná-lo num asilo, até porque não apresentava nenhum sinal de demência ou Alzheimer. Ao contrário, era lúcido e com memória capaz de lembrar histórias que divertiam a família.

Nos finais da tarde, o velho de olhos tristes pegava o cartão plastificado, abraçava-o junto ao peito e procurava um lugar na varanda onde os últimos raios de sol teimavam em sobreviver. Sentava numa cadeira velha, da idade dele, e lá ficava sentadito olhando fixamente para o cartão. Ninguém ousava chegar perto.

Um dia, ele esperou com ansiedade o pôr-do-sol. Por um momento, a filha achou que os olhos tristes finalmente mostrassem um pingo de alegria, mas achou que era impressão. Não era.

Naquele dia ele procurou sua cadeira na varanda, olhou demoradamente o cartão sob um céu sem nuvens. Sentou pesadamente na sua fiel cadeira amiga, gasta pelas brumas do tempo. Acomodou-se e colocou o cartão à sua frente, onde um sol desmaiado o acariciava.

Minutos depois, um neto o achou imóvel demais, cabeça pendendo para a frente. Deu o alarme, veio filha, filho, o médico – que, mais tarde, atestou infarto fulminante. Enquanto a tristeza enchia a casa como um vagalhão, alguém pegou o cartão. Em cima havia uma foto amarelada, gasta pelo tempo, do dia do casamento; abaixo, um amontoado de letras que parecia um jogo de pesca-palavras. Ainda não fazia sentido, até que a filha manuseou o cartão plastificado. Involuntariamente, inclinou-o de forma a pegar os últimos raios de sol. Subitamente, tudo fez sentido, o entardecer na cadeira, o abraço ao cartão e seu apego canino a ele. Afinal, ele era jeitoso, não era? Em determinado ângulo do sol poente, destacavam-se sete letras que explicavam porque o velho de olhos tristes parecia finalmente um velho de olhos alegres. O reencontro, afinal.

– Eu te amo.

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Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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