Balzaquiana à luz de velas

4 jul • A Vida como ela foiNenhum comentário em Balzaquiana à luz de velas

fernando Albrecht conta como foi o encontro à luz de velas com uma balzaquiana

Quase na esquina da Cristóvão Colombo com a Almirante Barroso, bairro Floresta, ficava um belo restaurante alemão, o Ratskeller, da família Baumbach. Pois foi numa noite de 1965 que eu e um amigo, o Fernão L., resolvemos comer bem. O que acontecia de três em três meses após árdua poupança do miserável salário de bancários.

Chovia pra caramba. Um temporal, na verdade, e dos brabos. Então, antes de aproar o restaurante, tratamos de encher o tanque, inclusive o suplementar, no Bob’s Bar, que ficava na Cristóvão Colombo, 36.

Quando chegamos ao restaurante estávamos molhados por fora e por dentro. Molhadíssimos, a bem da verdade.

Havia pouquíssimas mesas ocupadas. Escolhemos uma perto da janela bem na hora em que faltou luz, substituída em seguida por velas. Pedimos um vinho Santa Úrsula para completar o nível do óleo.

Perto da nossa mesa, sentava-se uma elegante e solitária senhora. Balzaquiana, para ser caridoso. Mas tinha lá seus atrativos, pelo menos na minha já embaçada visão. Usava os talheres certos, aquela coisa fina, vestido preto idem, um colar de pérolas, maquiagem um pouco exagerada.

O interessante é que, a cada cálice de vinho que eu bebia, ela ficava mais e mais jovem. Não usava aliança, mas um enorme anel, dedinho mingo sempre elevado num ângulo de 45 graus. Chique, enfim.

Meio na brincadeira, meio não, escrevi um bilhete vazado mais ou menos nos seguintes termos:

– Gentil senhorita, vossa presença me ilumina como os raios fúlgidos. Mas o efeito em mim é como o da luz da lua dos namorados. Mal me atrevo a pedir, mas poderias tu, formosa mulher, enfeitiçar-me com a luz dos teus olhos mais?

Acho que nunca escrevi tanta bobagem num pedaço tão pequeno. Fi-lo porque qui-lo. Achava que estava na frente de uma milionária solitária à procura de uma noite de sexo selvagem.

Pedi para o garçom entregá-lo discretamente. Ela leu, limpou a boca com o guardanapo, virou-se para mim. Enfiei o polegar no peito, “Sou eu mesmo, madame!”

Ela fez um “sim” meneando a aristocrática cabeça. O resto vocês podem bem imaginar.

Pegamos um táxi e fomos para a sua mansão. Ou pelo menos eu achei que fosse.

Na manhã seguinte, acordei com sol entrando pela janela de um quarto miserável cheirando a mofo. Fui à janela e vi que estava em um prédio decadente do Centro, do tipo “Me segura senão eu desabo”.

Voltei-me para o leito. Foi então que quase morri. O horror, o horror… O coronel Kurtz certamente se inspirou em mim para sua fala do Apocalipse Now.

Que era bem o caso. Jazia entre os lençóis amarfalhados uma múmia em adiantado estado de decomposição, boca aberta, com  sulcos mais profundos do que os que o rio Colorado cavou no Grand Canyon de Utah.

Mandei-me. E mandei-me bem mandado. Levei meses para me recuperar do trauma. Misturar vinho e balzaquianas à luz de velas, nunca mais!

https://www.brde.com.br/

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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