A língua de cada tribo

22 maio • A Vida como ela foiNenhum comentário em A língua de cada tribo

Cada povo tem sua língua e cada tribo tem sua gíria. Nos anos 80, surgiu a dos surfistas (Ó uaiê ó…). Se forçar um pouco a barra, todas as profissões liberais têm as suas, não raro herméticas pra caramba. Cá no Brasil temos coisas que proíbem que se faça piada de português. Por exemplo “pois sim” significa “não” e “pois não” quer dizer “sim”. Vá entender.

O diabo é que o povo fala de um jeito que os puristas detestam. Mas é a vox populi, que não está nem aí para concordâncias. E tem a música brega, que passa a ser cult sob determinadas condições de temperatura e pressão.

Cantor de cabaré, por exemplo, tinha isso bem desenvolvido. Pegava o microfone, ficava no meio da pista, meia-luz, mulherada acompanhando a música com os lábios, olhos fechados ou quase, braço estendido para alguém na plateia. Então curvava o corpo e cantava.

– Você jamais saberasss…queridá!…

Os esses a mais dão uma solenidade extra à advertência amorosa, elegância da periferia e do clima dos cabarés que nenhuma casa de garotas de programa conseguia e nem consegue igualar. Cabaré era um estado de espírito. Outra técnica era botar uma vogal extra antes do “r”, estendendo o “s” final:

– Taraveseiros sortosss…

Olhem a empáfia do “ta”. Gente de rádio fala parecido, coloca a vogal. Meia vogal, e fica esse efeito. Mas o bom mesmo é a gíria policial, que muda conforme os tempos. No meu tempo como repórter da Editoria de Polícia da ZH, do Ary de Carvalho, a melhor escola de jornalismo que existiu, final dos anos 1960, eu e um veterano que fazia questão de caprichar no português mais o fotógrafo (Uda? Tio Miro? Arnoud? Shigeru?) ao plantão do HPS verificar as ocorrências da madrugada. Um sonolento inspetor bocejou enquanto falava.

– Bueno, entrou dois presunto. Um anavaiado por uma mina na quadra e outro com uma azeitona na cumieira. Tava nos procurado da Capituras e levou teco dum pézinho depois que pedalaram a porta do barraco.

O veterano se mostrou surpreso, ou tentou.

– Não digues!

Era assim o mundo, chamar prostituta de rua por mina na quadra, cadáver de presunto, bala de azeitona, tiro por teco, cumieira por cabeça, Delegacia de Capturas por Capituras, brigadiano por pezinho, pé na porta por pedalar.

Mas ficou bem melhor que o “não digues”.

Imagem: Freepiki

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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