O doutor pobretão
Quantas vezes por dia você é achacado ou sofre tentativa de achaque? Mal sai do seu prédio, e o mendigo da esquina pede seu quinhão; na primeira esquina um colega do primeiro mostra o cartaz “estou com fome”; em outra, lá vem o cara querendo limpar seu parabrisa, especialmente quando é mulher na direção. Caminhando na rua dá-se o mesmo, e eles miram em quem está mais frágil ou quem tem roupa melhor.
Sérgio Jockyman (1930-2011) foi um brilhante escritor e jornalista. Suas crônicas na Folha da Tarde e seus comentários e causos na rádio faziam enorme sucesso. Uma das crônicas que tenho presente até hoje é o relato de um amigo dele que resolveu mudar radicalmente de vida, cansado que estava de sofrer achaques de amigos, parentes que queriam grana ou que ele fosse fiador ou avalista. Pôs sua bela casa para alugar, entregou todo seu guarda-roupa para entidades beneficentes, vendeu o carrão do ano.
Então ele deu início à fase 2 do seu plano: comprou casinha na Vila Farrapos de Porto Alegre, passou a usar roupas e sapatos comprados em brechó, e em vez do caro uísque que consumia, bebia cachaça com Undenberg no pé-sujo da esquina, além de vender seu título do Country Club. Era mais um pobretão solitário, embora com uma boa reserva no banco, sensivelmente aumentada porque não gastava mais com roupas, uísque e carros caros.
Contou ao Jockyman que, agora sim, era feliz. Não mais se angustiava com os achaques e se viu livre dos falsos amigos e parentes serpentes. Tudo que vinha pela frente era sincero, especialmente as amizades, que apenas queriam ouvir seus causos numa roda de trago.
E ninguém mais o chamava de doutor, graças a Deus. Quando alguém chama alguém com essa qualificação, lá vem mordida.