Irmã de Mozart teve o talento sufocado pelo próprio pai

4 jul • ArtigosNenhum comentário em Irmã de Mozart teve o talento sufocado pelo próprio pai

Um dos grandes mistérios na história da Música é o destino das composições da irmã de Wolfgang Amadeus Mozart, a talentosa  Maria Anna, cinco anos mais velha do que ele e conhecida por Nannerl. Ao que se sabe, nenhuma de suas obras sobreviveu, embora haja evidências de que estejam em seu próprio caderno de anotações, ainda preservado, camufladas e atribuídas a autores anônimos.

Ali, o pai das crianças copiava as partituras onde o pequeno Wolfgang começou a estudar música, com anotações anexas indicando a data em que o garoto aprendeu a tocá-las ao teclado, inclusive o tempo gasto para a execução. A partir dos 5 anos, com a ajuda de Nannerl para a redação de pequenas observações escritas nas partituras, Wolfgang passa a anotar suas composições no referido caderno. Isso porque ele aprendeu a compor antes de saber escrever.

Já Nannerl, coitada, era proibida de compor, pelo próprio Leopold. Só tinha autorização para tocar no teclado, normalmente cravo, fazendo dupla com o irmão, ao violino. Sempre acompanhados pelo pai, apresentavam-se com grande sucesso nas viagens e pelas cortes europeias. Como instrumentista, Nannerl era bem superior ao irmão. Nas improvisações e variações que se seguiam, porém, o pequeno era imbatível e recebia todos os aplausos dos ouvintes admirados.

O regente e professor australiano Martin Jarvis acredita ter identificado a assinatura musical de Maria Anna, confirmando que ela compunha peças depois usadas pelo irmão para aprender piano. Esse estudo se desenvolveu por cinco anos e esteve a cargo de técnicos forenses dos Estados Unidos e da Austrália, baseados nas caligrafias da família Mozart. Há três delas no caderno de Nannerl, a do pai e as dos dois irmãos.

Na partitura atribuída a um “suposto” Anônimo como costumam dizer os jornalistas hoje, a caligrafia de Nannerl é mais que evidente. E há vestígios de sua caligrafia em cerca de 20 peças anotadas no caderno. Sugiro que deem uma olhada na série Tutti Mozart, apresentada pelo brasileiro Vinicius Katar, que toca algumas dessas obras ao teclado. Basta solicitar ao Youtube.

Outra atração é uma marionete no papel de Wolfgang Amadeus, que conversa com o próprio  Vinicius e responde a perguntas dos mais diversos matizes formuladas por ouvintes.

Se nenhuma composição de Nannerl aparentemente sobreviveu, como temos certeza de que realmente existiram? Vamos nos valer, então, de carta enviada da Itália, pelo próprio Wolfgang, para a irmã, em 7 de julho de 1770:
“Estou espantado! Eu não tinha ideia de que você era capaz de compor de uma forma tão graciosa. Em uma palavra, o seu Lied é lindo. Peço-lhe, tentar fazer essas coisas com mais frequência.”

Até onde sabemos, Wolfgang e Nannerl foram muito próximos, não havendo competição entre eles. Sua infância foi agradável e criaram seu próprio mundo de fantasia. O problema era o pai, especialmente para ela. Criativos como eram, deram vida a um mundo onde falavam “ao contrário”, onde um era rei, a outra, rainha. Não é de se duvidar que tenham arquitetado um plano para manter em segredo e longe do pai as partituras de Nannerl. Razões para isso havia de sobra.

Em um concerto, quando Wolfgang  anuncia que a peça recém-executada era de sua irmã, Leopold enfurece e ordena que Nannerl nunca mais volte a compor. No século 18, as mulheres não se dedicavam à composição. E aquelas que sobreviviam da música, lecionando ou também como instrumentistas, eram equiparadas a prostitutas.

Após esse incidente familiar, Leopold passa a dar atenção apenas a Wolfgang, esquecendo da filha. Inclusive a proíbe-a de estudar violino e composição. Depois disso, Leopold volta todas suas atenções apenas para Wolfgang. Leopold anuncia que Nannerl deve permanecer em casa, enquanto ele assume  Wolfgang em turnês.

Certa feita, o receber proposta de casamento de um fã apaixonado, Nannerl tratou de consultar os familiares, como era praxe nas famílias bem situadas de Salzburgo. O sempre-disposto-desmancha-prazer-da-filha mostrou-se contrário ao enlace, certamente, temendo a perda de seu poder sobre ela,  uma vez casada. Novamente, Leopold impunha sua vontade contra a filha.

Compadecido com a situação da irmã, Wolfgang sugeriu que ela desse ouvidos apenas ao que seu coração mandava, mas não adiantou. O casamento não saiu. Mas Leopold caíra em contradição, pois sempre combatera a ideia de Nannerl estudar música e compor, devendo, isso sim, na opinião dele, preparar-se para a sua mais nobre missão de esposa, mãe e dona de casa, como convinha às moças de sua idade (18 anos).

Depois, o pai cai em nova contradição, ao obrigá-la a lecionar piano a estudantes ricos para financiar uma excursão do irmão à Itália. Nannerl cumpre as ordens paternas, mas, com suas perspectivas destroçadas,  cai em depressão profunda. Entretanto, surge um aspecto positivo, na questão. Dando aulas de piano, Nannerl volta a se interessar por música, reacendendo  o espírito entorpecido por força das circunstâncias adversas.

Em 1784, Nannerl casa-se com o magistrado Johann von Franz zu Sonnenburg, e dá à luz seu primeiro filho, Leopold. Sai de Salzburg e volta com o marido para St. Gilgen, onde haviam morado. Deixa o recém-nascido aos cuidados do avô Leopold. Este tentaria fazer do neto um novo gênio tipo Wolfgang. Mas não viveu por muito tempo mais.

Nannerl, que se afastara de Wolfgang pelos problemas já citados, fica ainda mais distante dele após o casamento do irmão com Constanze Weber. Após a morte de Leopold, pouco depois, os irmãos reatam, mas nada voltou a ser como antes. O afeto recíproco havia morrido. Contudo, o amor por Wolfgang reacende com a morte deste, em 1791,  e Nannerl dedica-se a sua memória. Com a morte do marido, Nannerl volta a lecionar piano. Morre completamente cega, em 1829.

Ela sempre foi forte, mas havia muitos contratempos em sua vida. A família Mozart viajou quase sem parar por toda a Europa com as duas crianças. Nannerl sobreviveu à varíola e ao tifo. Por pouco, não morreu de  bronquite, em Haia, em 1764. Na ocasião, chegou a receber a extrema-unção. Recuperou-se graças, em parte, ao fato de que a família real holandesa enviou o seu médico pessoal para cuidar dela. Anos mais tarde, ela também superou a tuberculose.

Não tenho maiores referências sobre a cegueira que a vitimou em seus cinco anos finais, apenas as cartas da juventude onde ela escreveu que via clarões, sem explicação. Talvez, pelas proibições do pai quando criança, Nannerl tenha forçado sua visão em excesso, estudando música quase no escuro, à noite, às escondidas de Leopold. Isso pode ter ter exigido muito esforço de seus olhos. Algo parecido pode ter ocorrido com o grande Johann Sebastian Bach, que, quando pequeno, também estudava música praticamente na escuridão  de um sótão, com a cumplicidade de um irmão, para não contrariar seu pai, que preferia vê-lo formado em Direito, ao invés de músico.

Como Nannerl, Bach esteve cego quase até o final de sua vida. Voltou a enxergar em 18 de julho de 1850, após duas cirurgias, exatamente 10 dias antes de morrer, em 28 de julho daquele ano, o que é tido como uma graça concedida àquele compositor que mais louvou o nome do Senhor em suas músicas. Finalizando, sugiro que peçam ao Google que busque no Youtube o belo septeto  composto por Mozart em homenagem a sua irmã, digitando:

W.A.Mozart  Divertimento n11 K251 Nannerl Septet

​Anexadas, duas gravuras que mostram o fake de Nannerl produzido por artistas no estúdio francês Deviant Art e outra gravura com o cartaz do filme, também francês, Nannerl, la soeur de Mozart (Nannerl, a irmã de Mozart).

Nannerl 6 Nannerl 7 (1)Nannerl 1

Cristiano Dartsch

Jornalista aposentado, mas não inativo. Nunca estudou ou cursou Música, do que sente falta, mas gosta demais dos clássicos, especialmente Mozart, Beethoven e Mendelssohn, além dos belcantistas italianos Rossini, Bellini e Donizetti. Também defende que a maior beleza da música como um todo está nas vozes e, entre estas, o destaque é para as divas especialistas em coloraturas, gênero do qual é fã. Pesquisa muito a respeito do assunto e procura divulgar o que acha belo ou interessante. Segundo ele, o retorno é mínimo, “mas o que esperar se o próprio Ministério da Cultura já foi fechado”?

Na foto, uma Mavica, a primeira máquina digital.

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