Crônica de um exercício militar corrompido

2 dez • ArtigosNenhum comentário em Crônica de um exercício militar corrompido

“Uma mesa de escritório é um lugar perigoso para observar o que acontece no mundo.”
John Le Carré

Desde que o infame Exercício-Conceito (jogo de guerra) Millenium MC’ 02 foi denunciado pela imprensa há treze anos, variadas análises afloraram acerca do seu fracasso e eventual legado. Na época, julho de 2002, o Exercício era a mais ambiciosa e cara simulação militar da história americana. Dispôs as Forças Armadas do EEUU (Blue team) contra adversário potencial sem nome (Red Team), com a intenção de criar e regulamentar meios de decisão e estratégia futura projetada cinco anos à frente. Consistia de um desembarque em força em incerto país localizado no Golfo Pérsico. Os analistas apontavam o Iraque como alvo.
Em setembro de 2002, após o término do exercício, o colunista do New York Times, Nicholas Kristof, alertou que ele pode nos ter ensinado uma clara lição relativa ao Iraque: derrota à vista. (Na mesma coluna admitiu: estou temeroso com relação ao Iraque; sou a favor de invadi-lo, mas só se pudermos faze-lo facilmente). O MC’ 02 foi mais tarde popularizado no livro Blink the Power of Thinking without Thinking (2005) (disponível na Amazon/Kindle), da autoria de Malcolm Gladwell, no qual o líder da Força Vermelha (OPFOR) – Brigadeiro General reformado do Marine Corps Paul Van Riper – é aplaudido por ter criado espontaneamente as condições para o sucesso com um estilo decisório que gerou rápida cognição. Recentemente, um ensaio publicado no Marine Corps Gazette divulgou que os controladores do Joint Forces Command – JFCOM (Comando Conjunto das Forças Armadas do EEUU) alteraram o cenário do MC’ 02 e que o Alto Comando falhou em entender a utilidade do exercício e o feed-back produzido.
O MC’ 02 pretendia ser o maior e mais elaborado exercício de geração de axiomas estratégicos e táticos da história militar do EEUU. Foi ordenado pelo Congresso americano para explorar desafios críticos dos combates no nível operacional da guerra que as forças americanas enfrentariam depois de 2010. Aprimorado durante dois anos envolveu operações do exército, força aérea e marinha. O exercício era parte real, 13.000 militares participando de 17 locais simulados, nove sites de treinamento e incontáveis computadores; e parte virtual, gerada por sofisticados programas de computação. Os operadores eram reais; as legiões por trás deles digitais. A ideia do Pentágono era promover com base na Doutrina Airland 2000 [1] uma demonstração de tecnologias um passo à frente, tencionando prover os comandantes com conhecimento e domínio do teatro de batalha para conduzir operações decisivas rapidamente contra futuros adversários.
Por causa do exercício/experimento focar comando/controle, a ênfase recaiu na funcionalidade e interface com os sistemas experimentais existentes. A carta de validação do exercício apontou falta de tempo para homologar a interação dos sistemas de armas, reafirmando ser o exercício válido especificamente para o item comando/controle e inválido para a interação dos sistemas de armas. A carta foi endereçada para os comitês representativos de todos os serviços e para o Diretor de Simulação das Forças Conjuntas e aceita como apropriada.
Oficialmente, a América (Força Azul) venceu e um Estado tiranizado foi libertado do seu diabólico ditador. O que na realidade ocorreu foi outra história, que alarmou o establishment de defesa do EEUU e pôs em cheque a capacidade militar para invadir o Iraque. De fato, esse jogo de guerra foi vencido por Sadam Hussein, quer dizer por o General Van Riper, comandante da Força Vermelha, fazendo o papel daquele.
Van Riper adotou uma estratégia “assimétrica” ou “híbrida”, empregando velhos métodos para escapar à vigilância eletrônica sofisticada da network da Força Azul. Desprezando as comunicações via rádio ou via satélite, as mensagens contendo ordens para as tropas da linha de frente foram distribuídas por meio de motociclistas e sinais de luz à moda da IIª Guerra Mundial foram usados para lançar ao ar as esquadrilhas de caças bombardeios. Além disso, valeu-se do sistema de radiofonia das mesquitas para transmitir dos minaretes, na hora da chamada para as orações, avisos e instruções cifradas aos operadores em terra. Na abertura do jogo de guerra, os Vermelhos receberam um ultimato dos Azuis, exigindo a rendição incondicional em 24 horas – não tomaram conhecimento. No segundo dia do exercício, alertados da aproximação da frota atacante os Vermelhos empregaram uma flotilha de pequenos e rápidos barcos militares e civis para determinar a localização dos Azuis. Tomando a iniciativa, lançaram um ataque preventivo por meio de uma salva maciça de mísseis de cruzeiro que burlaram os sensores das defesas eletrônicas dos Azuis atingindo dezesseis belonaves adversárias: um porta-aviões, dez cruzadores e destroyers e cinco ou seis navios de combate anfíbios foram afundados. Logo a seguir, capitalizando a inépcia dos Azuis de detectá-los, como era esperado, mais uma fração da frota Azul foi afundada por ataques aéreos a baixa altura e por uma armada vermelha de botes rápidos que realizaram ataques convencionais com mísseis e ataques “suicidas”. Estes foram modelados naquele realizado pela Al Qaeda contra o destroyer USS Cole no Yemen dois anos antes. Se o resultado dos ataques fosse real, representaria a “perda” de 20.000 homens e seria o maior desastre para a Marinha Americana desde Pearl Harbour.
Nessa altura, configurado o desastre, o exercício foi suspenso. O que aconteceu a seguir é familiar para quem já brincou de “soldado” no parque. Chocado com o fim abrupto e embaraçoso do mais caro (250 milhões de dólares) e sofisticado exercício militar da história americana, o Alto Comando simplesmente decretou que nada daquilo havia ocorrido. Por ordem do JFCOM as belonaves azuis foram postas a flutuar novamente, os homens ressuscitaram, os aviões voltaram a voar e as regras de engajamento foram alteradas. A seguir instruíram a Força Vermelha para que não interferisse enquanto os marines azuis desembarcavam; ordenaram também que abandonasse o modelo de mensageiros e passasse a usar telefones celulares e de redes de satélites para dar ordens. Ademais, mandaram que as defesas antiaéreas vermelhas fossem desativadas em horas aprazadas para que as aeronaves azuis pudessem voar em segurança. Van Riper negou-se a obedecer às ordens, para ele absurdas. Vou continuar a usar motociclistas e fazer anúncios nos alto-falantes das mesquitas, disse ele, no que foi contestado – não podia empregar nenhum método de controle e comando diferente do “praticado no ocidente”. Continuou a embaraçar a Força Azul com táticas não ortodoxas até 29 de julho quando constatou que as ordens dadas aos seus subordinados eram bloqueadas pelo grupo de controle. Negou-se a continuar jogando.
O Pentágono pensava que podia manter a manobra sob o manto da censura, porém enganou-se redondamente achando que podia calar o veterano Van Riper, típico marine – pouca conversa, muita ação e desassombrado em combate – suas condecorações do Vietnam comprovam. Queixou-se ele de que no início do exercício foi informado que o jogo era livre, qualquer um dos lados tentaria vencer, o que não ocorreu. Sentiu-se enganado. Uma frase que ouvi à exaustão: isso jamais poderia ter acontecido, disse Van Riper. Retruquei: jamais se pensou também que alguém atacaria o World Trade Center com uma aeronave … mas ninguém estava interessado nisso.
O imbroglio tornou-se tema conhecido e obrigatório nos briefings do Pentágono com a imprensa. O Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, convocou o Vice-Chefe da Junta dos Comandantes de Estados Maiores, General Peter Pace, para explicar porque a poderosa Força Azul precisou duas vidas para vencer. Voce me mata no primeiro dia e eu fico treze dias fazendo nada, ou voce me ressucita e ganha treze dias de experimentos válidos, independente de mim. Qual a melhor solução? perguntou Pace. Riper concordou em princípio com ele, porém ponderou que o argumento era irrelevante, pois o principal conceito em jogo no exercício denominado RDO (Rapid, Decisive Operation), segundo Van Riper e outros comandantes veteranos não passava de um jargão inteligível. Como se alguém desejasse operações lentas e não conclusivas! É apenas um slogan, disse ele. A questão da formulação e utilidade de conceitos tipo o RDO, calcados no RMA (Revolution in Military Affairs), foi objeto de intensa disputa no Pentágono em que a velha guarda uniformizada discordava dos estrategistas civis radicais que Rumsfeld havia colocado no Pentágono.
John Pike, diretor da consultoria Global Security de Washington, acredita que as divergências acerca do RMA e todo o affaire Van Riper refletiam, fundamentalmente, a diferença de opinião acerca do curso da ofensiva contra o Iraque. Uma linha de ação era marchar direto para Bagdá destruindo tudo no caminho e pelo “choque e pavor” provocar o colapso do regime, afirma Pike. Era o que Rumsfeld teimava em adotar. A alternativa era atacar em profundidade, desbordar as forças iraquianas e desferir um golpe decisivo. Como é sabido, o EEUU invadiu o Iraque no ano seguinte empregando a mesma Doutrina AirLand 2000 praticada pela desastrada Força Azul, embora com uma estratégia mista, direta e indireta, contemplando as duas opções descritas acima. Graças à debilidade das forças armadas iraquianas e a iniciativa e habilidade de alguns comandantes de campo americanos a vitória foi rápida e devastadora.
Pobre Iraque: não tinha um Van Riper para comandar a defesa do país.
Quais as lições legadas pelo Millenium Challenge? Micah Zenko, autor do livro Red Team: How to Suceed by Thinking Like the Enemy (2015) (disponível na Amazon/Kindle) e Consultor Senior do Council of Foreign Relations, opina que o MC’ 02 veio a ser uma referência pontual para denegrir as noções de colossal avanço e modernidade das transformações militares quiméricas que caracterizaram a era Rumsfeld. Um exercício projetado para socializar o inevitável “passo a frente” gerado pelas reformas irreais em andamento, causou precisamente um resultado oposto. Fez-se necessária a simulação da Força Vermelha, um investimento de 250 milhões de dólares e um General reformado motivado e rabugento para julgar que foi, afinal de contas, segundo ele, um experimento altamente útil, apesar de tudo.

NOTAS
[1] Trata-se de uma reformulação da Doutrina AirLand 1988 baseada na guerra de atrito, apropriada para o Teatro Europeu. A ênfase da AirLand 2000 é na guerra de manobra.

FONTES DE CONSULTA
http://web.archive.org/web/20070928005405/
http://www.jfcom.mil/about/experiments/mc02.htm
http://www.globalsecurity.org/
http://www.theguardian.com/international
http://www.nytimes.com/

Frederico Aranha

Servidor Jubilado da Justiça Federal, Advogado, Especialista em História Militar, Membro da Academia Brasileira de História Militar Terrestre, Pesquisador de Sistemas de Armas, Escritor, Articulista.

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