Uma traíra incomum
O seu Pacheco era capataz de estância lá pelas bandas do Alegrete. Era um tipo divertido e de vasta cultura campeira, com um vocabulário peculiar para descrever situações. Uma vez, fui matear com o índio veio no galpão. O dia já perdia a batalha para a noite, e o último combatente era uma fímbria de sol teimoso na altura do Pouso Novo, lado que à noite se vislumbravam dois sóis artificiais colocados na cabeça da locomotiva do trem húngaro que vinha de Uruguaiana.
Ele não estava no galpão, disseram-me que seu Pacheco fora buscar um cachorrinho serelepe e aprontador que fugiu da segurança para alguma aventura no campo. Não demorou e lá veio o capataz trazendo no colo o cusquinho, cruza de vira-lata com alguma cadela de madame. Desceu do cavalo e arqueou as costas.
– Custei a achar. Estava na beira da Sanga Grande. E já não deslumbro mais como antigamente.
O deslumbrar era vislumbrar. Dependendo do vislumbre, dá no mesmo. Seu Pacheco sentou devagarito na sua cadeira de fabricação própria e pegou a chaleira da trempe. Pensou alto.
– Mudou muito desde os tempos do Major Pedro Olímpio. Perto da Sanga Grande tinha um açude pequeno, mas ansim de traíra. Eu dava um tempo e, quando achava que elas já estavam grandotas, ia pescar. Um dia, fisguei uma que me fez cair de costas. Uma presa era de ouro? Traíra com dente de ouro, dá para acreditar? Codelôco! Com o susto ela se soltou e voltou para a água.
A cuia roncou.
– Fiquei tempo sem ir ir pro açude, aquilo era mal-assombrado pra ter traíra com dente de ouro. Uns meses depois, bebi uma canha forte, tomei coragem e fui lá de novo. Joguei o anzol e de novo caí de costas. Fisguei outra traíra, e ela falava!
Encheu a cuia de novo.
– E sabe o que ela falou? Disse “pelo amor de Deus não me mata porque sou a dentista da outra traíra!”
Passou-me a cuia.
– De maneira que não tenho prova, mas que aconteceu, aconteceu.