O retrato de Mao
Quando 1964 estourou, eu morava com meus pais e, como muitos da minha geração, era da esquerda festiva. Naquela década, era expressão muito usada, porque para boa parte dos “esquerdistas” ser gauche era a onda da moda. Menos ruim do que hoje, esse segmento não conhecia lhufas da literatura marxista, normalmente, filhos de pais da classe média, inclusive a alta. Ou seja, era a síndrome do tambor: bate, faz um barulhão; fura não tem nada por dentro.
Mesmo tendo lido mais que a média, eu surfava nessa onda revolucionária. E a turma de Mao distribuía graciosamente exemplares de uma revista chamada Nova China, contando as maravilhas do país perfeito. Eram edições que usavam um papel de alta gramatura, de primeira. Nove em cada dez fotos eram do Mao Tse Tung. Bueno, aí pelo dia 6 ou 7 de abril, vi que a cosia era séria, então me obriguei a queimar as duas dezenas de Nova China. Era difícil até de rasgar as páginas, por isso, as amontei no quintal e despejei um tubo interior de fluído para isqueiro e taquei fogo.
Mas quem disse que elas queimavam? O papel especial usado, imagino que impregnado com alguma tinta anti-inflamável, continuava mostrando a cara gorducha de Mao. E eu naquela agonia. E se bate a cana? Olhava ora para o portão ora para os exemplares indestrutíveis, por mais que eu atiçasse o fogo. Levou mais de meia hora para queimar parte delas, e, mesmo assim, dava para distinguir as fotos e títulos.
O DOPS não veio, para meu alívio paranoico. Acho que foi naquela época que passei a achar que o Mao não prestava. Imagina, deixar um militante nessa embaraçosa situação.