O livro que não foi escrito

8 dez • A Vida como ela foiNenhum comentário em O livro que não foi escrito

Texto que escrevi para o livro “Na Ponta da Agulha” do grande Claudinho Pereira:

Nos tempos em que a juventude dourada curtia a noite de Porto Alegre com novas formas de diversão, que não apenas as reuniões dançantes, a região da Avenida Independência concentrava a jeunesse dorée. Mas, o silêncio ainda era sagrado. O cantor e compositor Rubens Santos mantinha, na Rua Garibaldi, em sociedade com Lupicínio Rodrigues, o Clube dos Cozinheiros, com música ao vivo. Era proibido bater palmas, substituídas por estalo de dedos, para não atentar contra a moral e os bons costumes daqueles anos 60. Porto Alegre era uma festa. Silenciosa.

Eu sempre tive minhas dúvidas sobre esse binômio ser tão arraigado assim. Sabiam até os espirais mata-mosquitos que a esbórnia imperava naquele tempo. Fingia-se o pundonor. O garçom Zezinho, que hoje trabalha no restaurante Gambrinus, no Mercado Público, passou pela imortal Tia Dulce, na Avenida Independência, 827. Quando as boates e os bares fechavam, madrugada alta, íamos para a Tia Dulce comer – ou tomar – uma sopa de cebola. Tia Dulce, a proprietária, era casada com o seu Cassel, que lutou na II Guerra Mundial, e que para os íntimos mostrava discretamente um 45, para o caso de estourar a terceira guerra.

Perambulava eu pela Avenida Independência quando encontrei o pioneiro das boates, Carlos Heitor Azevedo. Ele começou com o Crazy Rabbit na Garibaldi e depois abriu a Baiuca, em frente ao Tia Dulce, rebatizado anos depois de Vila Velha. Então estamos falando de um especialista. Ele ia e vinha tripulando um jipe do tempo da guerra do seu Cassel. Papo vem, papo vai, ele falou:

– Vou escrever minhas memórias. E pretendo contar tudo. Mas tudo mesmo, e sobre todo o mundo, o que vi e ouvi. Vai ser um livro-bomba.

E aí era literal, porque Carlos Heitor foi soldado boina-azul da ONU na Faixa de Gaza, no início dos anos 60. E qual seria o nome desse atentado ?

– “Fatos que presenciei, pessoas que conheci.”

Vocês sabem que todos nós temos que ajudar o próximo, seja para expiar maldades feitas, seja para ter habeas corpus para maldades futuras. Afinal, nós católicos mal nascemos e já estamos com saldo devedor no cheque especial que acabamos de receber, cortesia do seu Adão, que não obedeceu as regras do condomínio.

Então fiz minha opção. Perguntei se o nome dele ainda constava no guia telefônico.

– Sim, disse um curioso Carlos Heitor.

– Então, amanhã passa o dia colado no telefone. Não arreda dele.

No dia seguinte, escrevi no Informe Especial que o conhecido homem da noite Carlos Heitor escreveria suas memórias, recheadas de episódios picantes. Dei o título e sugeri que armários seriam escancarados. De noite, liguei para ele. Estava feliz da vida.

– Rapaz, tu não sabes o que recebi de telefonemas e quantos amigos tenho! Todos querendo saber se eu pretendia voltar a ter uma casa noturna ou qualquer outro negócio, e que dinheiro não seria problema. A propósito, qual era mesmo o título da autobiografia ?

Em resumo, em apenas um dia apareceram mais mecenas do que pulgas em cão de mendigo e dólares na conta bancária do Elke Batista. Foi um milagre de Natal fora de época, o que levou o escritor a adiar sua obra.

Foi o livro não escrito que mais vendeu.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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