O Casca Grossa
Uma das coisas mais impressionantes desta nossa vida curta e grossa é quando existem amarras de amor e ódio, siameses que se repelem, mas são condenados a viver assim até a morte. Nestes casos, e apenas nestes, nem mesmo quando a fome bate à porta o amor pula a janela.
Tive um amigo mineiro que conheci em São Paulo nos anos 70, nem sei que fim levou, o Ivan Carvalho Simões, que me contou a história do Casca Grossa, no bar Rubayat, perto da Consolação. Casca era o dono de um daqueles circos mambembes que se apresentavam nas pequenas cidades do interior das Minas Gerais, no caso.
Lona de caminhão, luz do gato no poste, um leão desdentado, um palhaço com uma bolinha de pingue-pongue no nariz pintada com o esmalte de unha, e uma mulher barbuda com barba postiça. Que era a sua mulher e também a cozinheira do circo. Era tudo o que a casa oferecia.
Casca Grossa era o factótum do circo. Falava o “distinto público” na abertura, estalava o chicote num pangaré que, nas horas vagas, tracionava a carroça do circo, e jogava facas na mulher barbuda – sem a barba -amarrada numa mesa posta na vertical. Os pulsos dela eram cheios de cicatrizes.
Um dia, contou o Ivan, o Casca Grossa sumiu, abandonando a fiel parceira. Levou a lona, a carroça, o leão banguela, o mico leão dourado, todo o circo, inclusive as panelas e alguns quilos de feijão. Ela acordou só, desarvorada, confusa, perdida, sem dinheiro. Condoídos, os moradores arrumaram para ela um emprego de cozinheira no abrigo das freiras, só pela cama e comida.
Passaram-se anos e anos. Vez por outra, alguém se solidarizava com sua desgraça causada pelo fugitivo filho da puta. Ela sorria, destampava e voltava a tapar a panela fumegante, voltava-se para a pessoa e dizia sempre uma única frase com uma impressionante convicção.
– O Casca Grossa é assim mesmo. Ele vai, mas vorta.