O apito perdido
As nossas lembranças são como o caleidoscópio, que, ao virar, cambia de desenhos. Ou então, para entrar na moda do orgânico, são como um sopão de legumes, que ao ser fervido revolve ingredientes do fundo para cima e vice-versa. Pois ontem tomei um sopão e me veio o som nítido, alto e claro, do apito do trem em Montenegro. Morei lá nos anos 1950 até o início dos 60, e uma das casas em que morávamos ficava na parte alta da cidade. Rua Cel Antônio Inácio 302, jamais esquecerei.
Eu cursava o ginásio, hoje ensino médio. Tirando os temores adolescentes, eu era feliz. A mãe cultivava uma bela horta. Eu adorava molhar as plantas à tardinha. Comia tomate no pé, bastava esfregar na manga da camisa para tirar o pó. A imagem persiste até hoje. Tomateiro na esquerda, uma bananeira no fundo, temperos na esquerda e em ambos os lados cerca de bambu com chuchu pendurado à revelia.
O meu quarto era pequeno, a janela ficava perto da cama. Tinha vista direta para o lado da cidade em que ficava a Estação Ferroviária. De manhã bem cedo, quem me acordava era o apito do trem a vapor que rumava para Bento e Caxias do Sul. Como me lembro desse apito. O trem sumiu, mas pelo menos o apito ficou na minha lembrança. Ouço-o ainda hoje, a hora que eu quiser.