Naquele tempo

23 maio • ArtigosNenhum comentário em Naquele tempo

Por Gilberto Domingues Werner

A casa possuía um portão escuro de ferro, pesado, na entrada do jardim. Depois uma escada em mármore cinzento que transitava por entre os dois grandes “taludes” da entrada. Acima ficava a grande porta também em ferro escuro com janelas de vidro cristal “facetado” por trás das grades, que se abriam em duas. Cortinas impediam a visão da sala e do grande hall.

Nesta sala, a mais importante da casa, havia piso amarelo/ouro escuro do mármore de Carrara que no seu brilho e como um espelho, refletia no chão, o grande lustre dourado do teto. 

Eu era criança, achava essa visão maravilhosa, e espiava também minha pequena altura desde os pés à cabeça, naquele chão espelhado. Havia um silêncio grave em torno na sala e me sentia completamente feliz. 

Mas não era da casa, dos seus quartos, das salas, nos seus espaços a lembrança boa. Era do grande quintal, cheio de árvores escuras e sombras. Era das grandes cocheiras onde habitavam as duas vacas holandesas, a Mimosa e a Estrela, de onde provinham as melhores lembranças. As grandes vacas muito mansas e lentas deixavam escorrer das suas bocas, quando se alimentavam, fios de baba brancos e pegajosos. Baba mesmo.

Todas as manhãs e no fim de cada tarde, Clélia vinha com um balde e apojava a Mimosa e a Estrela. Era quando via a satisfação dos olhos da minha vó em poder usufruir daquele momento. Sentava em um pequeno banco e sobre a sua boca permanecia um bigode branco da espuma morna do leite recém-apojado. Depois, num gesto característico, passava a mão, e a espuma desaparecia. Me punha a imaginar o gosto daquele leite que era para minha vó era algo muito importante como para servir algum deus ou saciar um gosto requintado.

Havia no ar, também, um cheiro característico das vacas, do estrume das vacas, do leite das vacas.

Eu era criança e me sentia nesse momento também completamente feliz. 

Depois, com o tempo e a construção do edifício ao lado, as vacas foram para um grande galpão de madeira; um tambo de leite que havia na esquina da av. Carlos Gomes com av. Plínio Brasil Milano, nos altos do bairro Auxiliadora e não as vi mais, nunca mais. 

Mas o tempo melhor que ainda lembro foi quando as vacas estavam nas cocheiras do quintal da casa, na beira do Morro Ricaldone, no bairro do Moinhos de Vento, impossível de alguém imaginar hoje.

Às vezes, nos fins das tardes, sentava-me no alto do jardim de entrada para olhar, lá adiante, os barcos no rio, ouvia então o mugido das vacas nas cocheiras. Eram mugidos de satisfação das vacas alimentadas, imaginava. Eu ainda era criança e me sentia, nesse tempo, completamente feliz nas tardes e no início das noites quando, lá embaixo, começavam a acenderem-se as luzes para a noite da cidade grande.

Hoje quando falo destas pequenas felicidades que existiam no quintal da casa onde nasci, na casa de lembranças na beira do Morro Ricaldone, no Moinhos de Vento, uns pensam que sonhei e fantasiei meus sonhos. Outros custam a acreditar.

Eu ainda me sinto completamente feliz por contar destes sonhos.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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