Filosofia campeira

7 out • ArtigosNenhum comentário em Filosofia campeira

Nos tempos modernos, os casamentos estão durando menos do que antes, a qualquer “peleia” é dado um “time”, maior parte sem retorno. O bom mesmo eram aquelas uniões de outras eras, viviam juntos tanto tempo que o casal criava os filhos, depois netos, não raro algum bisneto, até para ter o que fazer nos tempos outonais.

Esta longevidade tinha lá os seus segredos, nada acontece sem explicação, começando por pouca oferta de parceiros de reposto na praça, como abunda agora, descasa num dia, casa no outro, na maioria das vezes, informalmente. Naquele tempo, era diferente o mercado de peças de estepe matrimonial, ao contrário de hoje, além de enxuto, era cheio de exigências.

Novas uniões só de papel passado. Então, somente possível no Uruguai, porém matrimônio visto sempre com algumas restrições, assim como se fosse casamento de segunda classe, atrás da igreja, diziam. Bem diferente daqueles socialmente corretos, feitos com grandes festanças, pompas e circunstâncias.

Como seminovos não existiam na época, e, pela robustez dos casórios, a oferta de usados era quase nula, sobrava mercado para os acidentados na estrada da vida, viúvos, de boa saída, se não rodados demais, se bem que sempre há “chinelo velho para um pé torto”. Os únicos modelos em que a oferta segue sempre a mesma são os 0 km, sendo que ao contrário do passado, hoje o candidato a futuro cônjuge pode ser avaliado ao ser ofertado, boa garantia a mais.

Neste mundo moderno, cheio de neologismos estrangeiros, ninguém mais se amarra sem um Test Drive, precaução para lá de válida num meio cheio de propaganda enganosa, bom conferir a máquina antes, seja de primeira, segunda ou várias camas. Melhor agir assim do que solicitar trocas depois, nem sempre bem-vistas pelas concessionárias sogras. Com razão, pois sempre expuseram complacentemente a oferta.

Quem viveu, naquele mundo passado, difícil se adaptar aos costumes atuais, como gente de hoje, mal acostumada na fartura bárbara da modernidade, se daria mal antes. Verdade que, naquela época, havia alguma compensação, amenizando carências, como consentidas escapadas eventuais do marido, das quais feita vista grossa, consideradas normais, porém, seja esclarecido, só toleradas, nunca desejadas.

Questão tática, melhor ignorar um “pinto galinhão”, de carreira tirada, que muitos passarinhos voando, de performance incerta, pois sempre volta ao ninho, desde que não enxotado. Por outro lado, a atuação externa não causa problemas maiores, a não ser fadiga nos exageros, sanável com algum estímulo, porém seguramente nunca sofre desgaste anatômico.

Sempre existiram dificuldades em uma época e outra para execução deste pecado venial, conforme definido pelos liberais, hoje. Neste mundo globalizado e muito dinâmico, pode faltar tempo para eventuais “puladas de cerca”. Ações que, no passado, eram tolhidas pelas  comunicações, transporte e alojamento.

Entretanto, a diferença enorme mesmo é na administração dos costumes conjugais, hoje tolerância zero, ontem mais jogo de cintura, fruto de privilégios e limitações, ambos monitorados por peculiaridades de seu tempo. Os deslizes, brigas, ciúmes e outros problemas são intemporais e normais num casamento, quase todos os matrimônios passam por estes testes de qualidade do produto.

Porém, este não é o caso de certo casal que morou aqui no Alegrete, do qual nunca se ouviu nenhuma referência de desacertos entre eles, nem menos, nem mais graves. Fidelidade total dele, nunca mijava fora do pinico, dela nem se fala, fato invulgar, bastante raro então e sempre.

O bem resolvido marido não fazia segredo da fórmula de sua invejável harmonia conjugal, revelando a tática, que embora singela era muito eficiente. Para tudo dar certo, só precisava ter duas moradias, uma na cidade e outra na fazenda.

Dizia ele que estando no “povo”, quando começava a achar a mulher com cara de égua ou ela o tratando como se fosse um cavalo coiceiro, dois dos mais alegados motivos nos desgastes matrimoniais, partia rumo à fazenda para necessária e restauradora folga  vivencial, física e espiritual. Depois de ficar por lá uns tempos, quando começava achar todas as éguas com cara de mulher, retornava saudoso ao lar, e a esposa, também carente de seu fogoso garanhão, pondo então a escrita em ordem, explicando esse proceder a longa e feliz união.

Prática conjugal muito eficiente e campeira, narrada não por graça, mas a ser seguida e imitada. Quem sabe quantas uniões modernas não preservará, pois dá um refresco na hora dos desgastes normais de qualquer casamento.

* Ontem, como hoje, passar uns dias longe um do outro pode somar, na volta é só bater os tições para reatiçar o fogo passado. Mas, nunca esquecer, não exagerar tempo da separação. Fome é má conselheira, “boi lerdo bebe água suja”.

Luiz Odilon

​O alegretense Luiz Odilon é um excelente contador de histórias recheadas do saber campeiro. Já escreveu um livro maravilhoso, Causos do Alegrete, entre outros escritos dispersos ou, na minha definição, amontoados. No bom sentido. Conhece como poucos o nosso Alegrete e seus personagens. ​Tem 81 anos e, segundo suas palavras, fará 82 dia 29 de dezembro “se até lá não chover demais. Velho tá sempre por uma”.​

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