A primeira ficha
Que o espírito de Natal já se esfumaçou há horas até as renas do Papai Noel sabem. Até elas, por sinal, já não têm esse espírito que outrora foi tão mágico para quase todos nós. A noite insone no dia 23, a Noite Feliz que em casa se cantava em alemão, olhos arregalados ao abrir o presente, o pinheiro cheio de bolas de vidro feitas pela Fábrica Natal, as velas acesas pingando cera em cima do presépio, laboriosamente construído com um espelho à guisa de laguinho, abundante barba-de-pau colhida por nós, a Missa do Galo antes de voltar para casa e abrir o presente de olhos arregalados despedaçando o pacote, poder brincar até tarde e a alegria ao acordar na manhã do dia 25 sabendo que não fora apenas um sonho.
Alguns marcos dessa coisa mágica que o Natal já foi estão nítidos na minha cabeça. O fim da crença no Papai Noel, as primeiras desilusões da vida, como a cena que tenho na retina até hoje. Meu primo Günther Albrecht recém-chegado, sem eira nem beira, da Alemanha, pais mortos nos bombardeios aliados na Alemanha, sem emprego, sem família, sem nada, sem Papai Noel, a não ser o abrigo que o tio dele, meu pai Francisco José, lhe ofereceu, em São Vendelino, até que ele se aprumasse na vida. Que noite triste aquela em que o procurei e o encontrei chorando convulsivamente num canto da casa.
Acho que foi naquela noite de 24 de dezembro, na segunda metade dos anos 1940, que senti, pela primeira vez, o que era dor de verdade. Não dor física, dor de coração, e coração solitário ao extremo. Então senti que o mundo não era justo, que eu era muito feliz por ter meus pais perto de mim.