A noite dos imperdoáveis

23 ago • A Vida como ela foiNenhum comentário em A noite dos imperdoáveis

– Tu perdoa?

Certa noite escura e tenebrosa, um grupo de universitários e bancários findou a via crucis de estação em estação – bem, de bar em bar – começando no Centro de Porto Alegre, que na época tinha mais bares que lavoura de soja hoje em dia.

– Olha, não sei se perdoo. Foi muito constrangedor.

A noite começou cedo. Findo o expediente bancário interno, às 18h45min, a primeira das 15 estações foi no bar Gauchinha, na Rua da Praia, do seu Johann Pasberg, que ficava na sobreloja do prédio. Depois do quinto chope, ninguém mais conseguia descer aquela escada em caracol apertada como rato em guampa. A segunda estação foi no Tuim.

A terceira parada foi no Gylbert’s, na Salgado Filho; depois a turma desceu até o Naval, no Mercado, bar de marinheiro bêbado então. A quinta estação se deu no Liliput, perto da Lojas Renner; a sexta foi perto dali, o Hubertus, que oferecia livros para os clientes, é mole? Chope com Jorge Amado, uísque com Agatha Christie, licor Cointreau com Simon Templar, aquele do O Santo.

A partir daí, tudo começou a ficar nebuloso. Ninguém se lembra se houve outras estações, mas a última foi no Roquete, na Independência. Ali começou o Armagedon hepático da turma. A corrosiva mistura de chope com Trigo velho finalmente disse a que veio. Um fiasco do tamanho do Morro da Polícia, que não tinha Polícia, e, quando virou Morro do Turista, não tinha turista. Depois, virou Morro da Embratel, mas a Embratel não existe mais. Destino.

– Tudo bem se doeu tanto assim. Não está mais aqui quem falou.

Anos e anos depois, um dos sobreviventes entrou no Roquete para um lanche rápido. Já não era mais bar, virou lanchonete, um Mr. Hyde desse sagrado negócio. Súbito, notou que o cara atrás da caixa lembrava alguém. Quem? Ora, um dos donos, mais velho, puxa, mais de 40 anos. Mas era. Foi aí que ambos se lembraram da noite em que uma turma de malucos derrubou mesas e cadeiras, uma bandeja cheia de copos de chope do garçom, a cozinheira, diversos fregueses, sem falar que um deles esguelhou a serpentina.

– Bom, então tá, não perdoas. Fico triste, mas entendo.

Neste preciso momento, houve um lampejo de entendimento silencioso entre os dois. Mas ficou nisso. Quem sabe um perdão tácito, pensou o antigo celerado. Mas o ar não era lá muito respirável.

Não foi uma boa noite aquela. Nenhuma das duas.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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