Uma camisa por testemunha
Pouco antes do fecha da edição do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o chefe da reportagem policial Wanderley Soares recebe a visita de conhecido de longa data, uma figura que escrevia com alguma regularidade para o Correio do Povo, da velha Caldas Jr, sob comando de Breno Caldas. Ele era meio, digamos, excêntrico. O Wandeco, falecido em março deste ano, observou que a visita estava com a camisa rasgada e ensanguentada, então viu, de cara, que a bronca era severa.
– Mas o que houve contigo?
– Pois é, meu caro Wanderley, estou vindo a ti porque o jornal no qual escrevo não quis abrigar a minha triste história.
O Wanderley ficou muito interessado. O ensaguentado prosseguiu a narrativa.
– Pois veja só. Estava eu caminhando no Centro quando me deparei com dois marmanjos, acho que camelôs, dedicando-se ao desforço físico. No popular, brigavam a socos. Como sou da paz, tentei apartar a briga.
– E?…
– Veja só como esse mundo é cruel. Em vez de me agradecer, os dois passaram a me agredir gritando que eu não tinha nada que me meter em briga alheia. Levei um soco no nariz, e, durante a refrega, rasgaram minha camisa, já encharcada de sangue, como se vê. Nisso, chegam dois PMs para ver o que estava acontecendo.
– Apartaram a briga, né?
O articulista suspirou.
– Não.Os brigões mentiram, disseram aos brigadianos que eu é que tinha começado a bronca, e o fizeram com tal veemência e convicção que os policiais acreditaram.
– Não!
– Sim. E ainda apanhei deles.
– Ah não, isso é uma barbaridade – falou o Wanderley, que pegou a Bic e laudas de papel. – Que horas foi e em que rua do Centro?
– Na Salgado, às 21h. Mas devo esclarecer que não foi hoje?
– Como assim, não foi hoje?
– Foi há dois meses.
– Então…então…mas por que diabos você está com a camisa rasgada e ensanguentada?
Um sorriso triste veio flutuando.
– É que…bem, é que…sabe, eu guardei a camisa e a vesti para ilustrar a violência que me fizeram.
O Wandeco ficou uns bons 30 segundos olhando fixamente para o visitante, esferográfica imóvel apontada para uma lauda que nunca registraria o estranho caso que acabara de ouvir.