Drible na morte

20 out • A Vida como ela foiNenhum comentário em Drible na morte

 Quase morrer duas vezes num dia só é daqueles acontecimentos que deixam arrepiado até quem ouve o causo. Bar Pelotense na rua Riachuelo, metade dos anos 1960. Mesas com armação de ferro finamente trabalhados, tampa de mármore de Carrara, já gastos de tanto os garçons passarem o pano neles. Acima delas, ventiladores de teto encardidos pelo tempo e pela fumaça de cigarro e gordura que emanava dos pratos. Ventiladores de teto esfriam a comida e esquentam o chope, vocês sabem.

 Casualmente, olhei para uma mesa não longe da minha no momento em que dois senhores sentaram, mesa bem abaixo de uma daquelas coisas giratórias com pesadas pás de metal. O garçom Elpídio trouxe dois chopes. Disseram saúde, bateram os copos e tomaram largos goles da bebida como se fossem os últimos da face da terra.

 Neste preciso momento, o ventilador se divorciou do teto e veio abaixo. Bateu com estrondo na mesa de mármore quebrando-a, e só não pegou os dois velhotes porque estavam entornado a bebida e haviam saído da linha de tiro. Ficaram na posição Mandrake, estáticos, copos ainda junto aos lábios, como uma imagem congelada, rodeados de cacos do tampo. Perguntei a eles se estavam bem. Sim, disseram em conjunto. O mais velho pegou as palavras e as arremessou em minha direção.

 Contou que saíram de Camaquã pela manhã e que, na entrada da BR, veio uma carreta desgovernada e arrastou o Opala em que estavam até prensá-lo contra o muro de uma casa, destruindo toda a dianteira do volante da direção até o para-choque dianteiro. Ficaram a centímetros da morte. O motor rachou ao meio. Nos estertores, assobiava ao receber a água do radiador como se o quisessem matá-lo por afogamento, como se já não estivesse morto. Trocaram de mesa, não sem antes conferir se acima deles não havia outro ventilador homicida.

 – Então resolvemos comemorar a nossa sobrevivência na Pelotense, quando vem mais essa. Felizmente, escapamos da morte nos dois casos, caraio!

 Fiquei matutando por algum tempo. O Elpídio pegou vassoura e pá para recolher os restos mortais do infeliz mármore. Deixei o dinheiro da dolorosa em cima da mesa. Virei para eles:

 – Olhem, não me levem a mal, mas antes de tomar meu rumo gostaria de saber pra que lado ou bar vocês vão.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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