Os carros de praça

29 ago • A Vida como ela foiNenhum comentário em Os carros de praça

  A geração Uber e até mesmo as mais recentes pós-privatização da antiga Companhia Riograndense de Comunicações (CRT) não tem ideia de como era problemático achar um táxi. O problema não era exatamente o táxi, mas o telefone para chamar um. Telefone era coisa de rico. Uma linha chegava a custar US$ 4/5mil, dependendo do bairro, e os orelhões eram mínimos, isso quando não engoliam fichas. Você tinha que ter um estoque, porque eram poucas as casas comerciais que as vendiam. Fosse de noite, era missão impossível.

 No horário comercial, até que era fácil pegar um na rua, chuva à parte, mas o grosso tinha pontos fixos com telefone. E também não era qualquer um que podia pagar. Aprendi cedo que era bom ter números de “praças de táxi” de diversos bairros. Em dias e horários de muita demanda os pontos ficavam vazios, daí era comum ouvir a campainha do telefone soando sem parar porque não havia taxista no ponto. Enchia o saco da vizinhança barbaridade.

 E aí entra uma história. Na lateral do Chalé da Praça XV, perto do antigo abrigo dos bondes, hoje Largo Glênio Peres, havia um ponto muito concorrido, porque era Centro, tocava sem parar. Estou falando do tempo em que o Chalé do seu Ernesto Moser vendia até 50 barris de chope por dia e toda a área era mais segura que a Casa Branca. Quando a casa fechava, já de madrugada, os taxistas ficavam. Um dia, o ponto foi extinto, o telefone, que estava num poste, foi retirado, mas a campainha não.

 Durante anos, aquela maldita campainha tocava sem parar até de madrugada. Quando eu saía do Chalé ficava imaginando qual fantasma ligava para um telefone que não estava mais ali. Era uma composição visual e acústica bizarra, um telefone desaparecido, mas com campainha ativa, um ponto de “carro de praça” sem carro. Fui atrás e pedi para um amigo da CRT que desvendasse o mistério da campainha de telefone sem telefone, mas ele não conseguiu resolvê-lo.

 Restou a explicação dos fantasmas do Chalé e do Abrigo dos Bondes, que, na parte superior, chegou a abrigar a boate Babalu, que eu não peguei. Só podiam ser eles. Lembro de uma noite em que o Chalé estava fechando. Uma chuva persistente de pingos sem dó, um vento frio uivante e aquela campainha tocando sem parar. Algumas almas vestidas com capotes e levando guarda-chuvas que o minuano virou ao avesso, caminhando curvadas para se proteger do frio de julho.

 Talvez nestas horas esses caminhantes não fossem pessoas, talvez fossem os fantasmas que se mostravam, dentro dos capotes não havia ninguém. Os capotes, pensei, escondiam o vazio de uma vida que já tinha se ido há muito tempo.

Foto: internet sem indicação de autor

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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