Conversa de estátua

29 maio • A Vida como ela foiNenhum comentário em Conversa de estátua

 Chovia forte na sexta-feira. Os poetas Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana molhavam-se na Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Nem as pombas arriscavam-se no toró. Poderiam a ir a pique, o que seria esquisito para uma ave. De dia, eles ficam quietos, mas, nas madrugadas desertas, os seus fantasmas entram nas peças frias de metal, aquecendo-as. E eles falam.

 – Que toró, hein Carlos? Não tens medo de te resfriar?

 – Eu não, imagina. Minha saúde é de ferro, Quintana. Nunca ninguém chamou você de Mário?

 – Chamou, mas não gostei. Sabe, aquela piada infame de conhecer o Mário…

 – Imagino. Pra mim, Carlos está de bom tamanho. Desde que eu fui ser gauche na vida.

 – Também sinto saudade da minha mãe, lá do Alegrete. Ô Carlos, nesses anos todos que estás em Porto Alegre, o que mais chamou tua atenção?

 – O frio. Terra fria essa sua, Má…Quintana. Lá na minha Itabira, nas Minas Gerais nunca mais, o clima é menos úmido. E todo mundo me conhece, ao contrário dos gaúchos que passam por mim.

 – E Belo Horizonte?

 – Nunca mais, meu poeta, nunca mais.

 – Triste horizonte. Que coisa.

 – Meu caro Mário Quintana, sabes que eu gosto muito das nossas conversas. Pena são os chatos que passam e nos obrigam a ficar mudos.

 – A recíproca é verdadeira. E concordo sobre os chatos. Pior são os que fazem graçolas e tiram aquelas fotos…como é mesmo o nome?

 – Selfies. Um dia, vi um casal de namorados falando que iam tirar um. Custei a entender do que se tratava. Até já escrevi…

 – Sobre fotografia? Sim, conheço: “É preciso que a lente mágica/enriqueça a visão humana/e do real de cada coisa/um mais seco real extraia/para que penetremos fundo/no puro enigma das imagens.”. Bonitos versos, Carlos.

 – Bem, acho que temos que nos calar. Estou vendo que alguns assaltantes caminham em nossa direção.

 – Concordo. Vamos antes que nos roubem. Já perdemos a vida, só nos falta que levem nossos corpos para alguma fundição de fundo de quintal.

 Então os dois ficaram mudos e imóveis, como convém às estátuas. Seus fantasmas foram embora, voaram para a um lugar em que poetas ainda fazem poesia, mesmo que ninguém mais leia seus escritos por mais belos que sejam. Você não acredita nisso, leitor, eu sei, mas não é do sobrenatural que estou falando. Como escreveu Mário Quintana, tudo é natural, inclusive o sobrenatural.

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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